segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

.Banhos de Alice




Foto: Marta Soares
Prato de Flores - Nação Zumbi


        O sol se espalhava sobre o seu rosto branco. A luz escorria pelo seio da face e respingava leve pelo chão. Há quantos dias a vida não era tão linda. Um enorme sorriso abriu em seu rosto. Para Alice, viver não podia ser simples. Tinha de ser grande; de transbordar sua alma em intensidade. Mas não era sempre assim. Quase nunca. Durante quase todo o tempo buscava, incrédula, pelos curtos momentos que lhe faziam realmente sentir. Sua alegria, agora, era assim, desmotivada. Não precisava se explicar, simplesmente estava nela. Um momento em suas mãos. Ela sentia. Quem dera, Alice, anotar em um papel um mapa dos sentidos. Voltar ao mesmo lugar de sua cabeça, o mesmo estado que lhe fazia viva, presente. Era um banho. O sol, decifrado pelo colorido vidro entreaberto, se espalhava sobre seu rosto branco. E a luz, assim, esparramada como um felino preguiçoso, escorria pelo seio da face e se encaixava leve nos azulejos do chão. A vida se passava sob a ducha que lhe partia o corpo ao meio, sem passado, sem futuro. Duas metades dedicadas à um presente só. À um presente, e só.
        Mas outra pele lhe faltava ali. Ser guardada em um par de braços, que lhe eximissem toda dúvida. Um alguém que escolhesse um entre tantos futuros possíveis e lhe presenteasse embalado em segurança, e então: Alice. Finalmente, ela própria... Pobre bela. Sabia mesmo inverter o mundo naqueles banhos. Todo mal se perdia e, diluído em água, impregnava os azulejos do chão. Uma boa bucha e muita espuma. Esfregou cada centímetro da pele branca. As orelhas, deixou. Agradava-lhe um pouco de sebo. Lavou a alma. Abriu o peito e escovou o já combalido coração. E, por último, regou a planta dos pés. Secou-se e, por fim, lustrou as retinas. Agora, de corpo e alma limpos e a mente vazia, estava pronta para voltar à realidade.

Rômulo Medeiros

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

.Acer Aspire One


*Jean Michel Basquiat


Há nessa luz que me suga, uma espécia de sedução. Um aspirador de mentes, que me emburrece e me impede de pensar. Me acelera, me irrita, me seduz, me tortura. Me torna um inseto desprezível, adicto à seu algoz acesso e quente. Que me queime esta maquininha de engolir tempo. Sou um glutão.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009


Ps: Dê o play antes de ler.



Navilouca - Pedro Luís e a Parede


Meus olhos vesgos de proximidade encararam a bala. Com um toque, carne e ossos seriam perfurados; a massa cinzenta abriria caminho para o tórrido metal que, alojado em um canto qualquer de meu crânio, me queimaria por dentro. Aquela sensação já não me assustava mais. Não é preciso ter uma bala disposta a atravessar uma cabeça para se notar o quão frágil é a vida. Segue frágil. Sem saber sequer aonde quer chegar. E jamais chega. Termina antes do fim. Mas segue sempre, sem pausas, rumo próprio. Vítima do acaso; amante do azar. Antes assim. Vida é livre; vida é alma. E o corpo, sua prisão. Doce lar do drama humano. A liberdade mais uma vez estava em minhas mãos, ao toque de um dedo. Corpo e alma mancomunados em uma conspiração emancipacionista. E os dedos que hesitavam em agir. Há dias a mesma cena patética. A bala no escuro túnel zombava de mim e eu a mantinha ali. E a alma, escrava conformada, ardia uma dor qualquer..



quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

.Dunas





            O vento voava baixo. Leve. Cor de areia. Do fino pó que colhia do chão e levava para se mostrar. Para que o víssemos brincar de curvas no espaço. O vento voava baixo. Entrecortava seu corpo nú, repousado sobre o chão macio. Pés, coxas e peito. Grãos que brincavam nas curvas. Eu que brincava nas curvas. O mar nos presenteava em ondas, saudações. O mar, o deserto e nós. O mar deserto. Nós e as dunas. E o vento cor de areia que se moldava em seu corpo. Submisso à beleza, tentava, fluido, tocar o intocável. Nem o tato de mil mãos sentiriam aquelas curvas naquele momento. Virilha, barriga, boca e os olhos apertados de sol. Ela me olhou e sorriu. O vento que brincava nela. Ela era Dunas.


Navalha  -  João Bosco

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

.Holiday






Os dois se sentaram no chão sem olhar. Aqui é o lugar. Olha o vento do qual eu falei. Disse o primeiro, enquanto abria o bolso menor da mochila já velha e um pouco suja.  Fino. Me passa o fogo? Respondeu o segundo, alisando o cigarro entre os dedos com a impaciência contida que só o vício pode provocar. Enquanto, ao fundo, o inconfundível som de rádio velho vibrava em uma áspera  melodia de jazz. Era um tapa nas ventas; dedos em um choque seco na flacidez da face. Olhos, nariz e bochechas em um ondulado fremir. Agora tremia o mundo. Fez-se mais uma cabeça, perdida. Espalhando em pedaços pensamentos desconexos, cada vez mais próximos de se juntarem. Uma mochila se fechava e a ultima brasa minguava. A onírica fumaça fundira som e imagem. “Era Billie. A culpa era dela”, tive a certeza.


Trav'lin' All Alone - Billie Holiday & Her Orchestra