quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

.Clara


       
      Clara seria sempre um mistério para mim. Quando éramos pequenas lembro-a como o espelho do meu futuro. Tudo que queria ser. Sentadas no banco de trás de um velho carro em uma viajem qualquer e Clara sempre distante. Seu corpo sob mim e seu espírito do outro lado do orvalhado vidro; sempre ausente. Suficiente em seu misterioso mundo interno. Como queria viajar em sua cabeça, saber tudo o que pensava com aqueles olhos distantes. Mas talvez fosse melhor não incomoda-la; grandiosas idéias estavam sendo vividas ali. Minha cabeça repousava em suas coxas mirradas de criança que, para mim, eram como o mais macio recosto de plumas. Os postes, apressados, ultrapassavam o carro em alta velocidade com suas luzes agressivas que, logo, eram divididas em mil pelas gotículas no vidro e percorriam, como um filme projetado, a tela de minhas pestanas serradas. Me alucinava ver por entre os cílios dos olhos mal abertos a seriedade tão adulta da menina Clara. Absorta em devaneios quaisquer. Que alvo seus olhos apontavam? Ás vezes, o rosto sério era subitamente enfeitado por um tímido sorriso; outras por uma misteriosa lágrima. A lágrima era o mais belo adorno a completar seu rosto ensimesmado. Lhe preenchia do hermetismo que me cativava. Então, eu respondia com um sutil carinho ou abraço disfarçado em um movimento natural de meu cínico sono. Mas, de toda forma, troquemos o assunto. O tempo não volta atrás, não é mesmo? E a maturidade por ele arbitrariamente imposta nos emburrece e distancia do verdadeiro que éramos quando miúdos. Clara se tornou o seu oposto. E eu, o que lia de sua imagem no velho vidro de carro.

2 comentários:

Ana Paula Braga disse...

Que texto gostoso de ler, Rômulo!

Ana Paula Braga disse...

Cínico sono... Desse aí eu já desconfiava!